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Nota #4: Memória

Desde que comecei minhas experimentações nas artes visuais, a memória é um tema recorrente nos meus trabalhos, o que faz total sentido, já que quanto mais o tempo passa, mais a gente gosta de rememorar acontecimentos; mas nem toda lembrança é boa, nem todo mergulho é fácil e nem todo material de pesquisa fica no campo das reminiscências mágicas da infância. Ouso dizer, inclusive, que esse conteúdo é o menos eficiente das recordações. Não porque estão na infância, mas em razão de que ocupam um espaço de saúde mental e leveza.


Nessa de resgatar pedaços da minha história, decidi me apropriar de acontecimentos antigos ressonantes e olhar eles pela milésima vez, na tentativa de desmascarar velhos mistérios.


Nasci em Rio Grande, litoral sul do RS e lá morei até meus 6 anos de idade. Minhas recordações daquele lugar são poucas e bem específicas. Lembro da casa em que morávamos: um chalé de madeira verde água estilo anos 80, um pátio com gramado nos fundos da casa, muros baixos entre um vizinho e outro e lá atrás, já fora da área do terreno, uma quadra de futebol.


Lá, lembro da sensação de me sentir sozinha, desencaixada. Uma percepção de criança que me fez pensar e repensar por muitos anos e, mesmo sendo um olhar antigo, hoje, há 30 anos de distância dessa fatia da minha vida, de alguma forma, isso faz parte do meu eu adulto. Tenho a lembrança de espaços que nem mesmo sei se existem, talvez memórias inventadas misturadas com fragmentos de uma realidade. Outras recordações chegam como flashs, muito rápidas e completamente aleatórias: minha mãe falando o nome de um gato numa ligação, eu vendo as meninas brincando na quadra de futebol - fiquei curiosa, queria brincar junto, o sol na janela da sala, o sofá verde em frente à televisão, o quarto do meu irmão ao lado do meu, a vez que apertei meus dedos na porta do banheiro e chorei muito, os ratos gigantes que rondavam a casa, a tela de nylon verde na porta dos fundos, o cavalo no pátio, a piscina de criança montada no gramado, o medo de ficar sozinha.


Foto: eu no terreno da casa de Rio Grande, final dos anos 80.

Para além das memórias vividas, foi um sonho que tive durante meses, talvez anos, nem sei. Ele era sempre igual: o lugar, o que eu sentia, a sequência de acontecimentos. Os elementos são conhecidos, uma visão simples mas incômoda para uma criança. No sonho, eu era eu mesma e brincava tranquila no gramado nos fundos do pátio da casa - como a foto acima - e lá de trás, daquela casa lá do fundo, começava a se movimentar algo ou alguém que vinha na minha direção. Parecia uma pessoa e vinha muito depressa. Quando se aproximou do cercado do terreno eu vi: não era uma pessoa e sim, uma espécie de monstro. No desespero do medo, levanto rapidamente e tento correr para garagem de casa, mas ele me pega. Todas as vezes. O lugar de onde vinha o monstro não era um lugar qualquer, era o quartel militar da cidade, prédio que eu visitava com certa frequência, já que meu pai trabalhava lá. Os corredores cheiravam à papeladas antigas e café passado. Quase não tenho recordações do local, mas lembro do barulho dos coturnos pretos no assoalho e dos uniformes verde oliva. Quando eu fecho meus olhos e volto para trás, não recordo muito mais do que isso, mas percebi duas coisas: a primeira, é que em muitos episódios, o suposto monstro mudava e minha memória sobre ele se modificava com o passar do tempo. É quase como se ele jamais respondesse a uma identidade definitiva. A segunda, diz respeito ao final. Sim, a cena que até agora se repetia, de repente passou por uma revisão de desfecho, acrescentando pessoas, elementos e ações. No novo epílogo, ao invés do monstro avançar para cima de mim, ele era atacado pelo meu pai, que saía de maneira dramática de dentro da garagem, carregando nos braços uma arma e era com ela que ele acabava com a criatura. Me lembro que esse fim me trouxe alívio numa certa altura da minha minúscula vida. Depois de muito tempo sendo pega, pude me sentir, enfim, protegida. Permaneci com o sonho por um curto prazo depois do novo desfecho. Talvez realmente tenha me trazido o conforto que eu precisava naquela época. Embora jamais tenha tido esse sonho novamente, não deixei de me perguntar: "mas afinal, quem é o monstro?". E é aqui que meu novo processo de pesquisa e desenvolvimento começa. Vou reconstruir essa memória e reviver esses dias para criar uma série costurando tudo que sei. Quem sabe dou nome aos desconhecidos?...



Revisão: Cassiana Görgen

 
 
 

2 comentarios


Alejandra Presa
Alejandra Presa
27 dic 2022

Querida, gosto muito de ler teus relatos e reflexões. Faz pensar em meus próprios processos e questões também.

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A Romero
A Romero
27 dic 2022
Contestando a

Ale, que bom saber que isso movimenta aí dentro também. Porque afinal essa é a grande proposta, o coletivo. Alguém que olha para dentro de si, estimule o outro a se olhar também. <3

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