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Nota #2

Atualizado: 17 de nov. de 2022

Tem quem leia três, cinco e até sete livros simultaneamente. Eu, por outro lado, leio apenas um por vez. Como alguém de memória pouco confiável, tenho medo de misturar as tramas e, no fim, nem saber mais quem matou quem. Com excessão da leitura, todo resto acontece de forma caótica: lavo a louça, vejo a série na televisão, troco a música, coloco o gato pra fora, limpo o chão, tomo água, volto para louça e, neste ritmo, tenho a ilusão de economizar horas do meu dia, talvez porque veja tudo acontecendo paralelamente. Quando entra no assunto projetos, não é diferente. Trabalho em dois ou três ao mesmo tempo.


Percebi como isso funciona bem para mim, não somente pela dinâmica mais ativa, mas também pelo próprio desmembramento dos projetos, ao longo dos processo em conjunto. Em 2021, iniciei um quadro, eu adorava ele. Foi surgindo no meio de uma série de acontecimentos daquele ano. Poucos dias depois de finalizar a primeira parte da tela, fiz como sempre faço: me afasto um tempo. Aliás, admiro artistas que começam uma tela às 21h e finalizam às 3h da manhã. Eu não consigo. E digo que não consigo, não pela minha rotina, mas porque nunca fui assim. Meu processo é fragmentado e lento.


Foto: primeiros estudos, 2021


A questão é que a tela parou por quase um ano e, com o tempo, me causou até incômodo entrar na sala e ver ela parada ali. Era uma mistura de: "zero vontade de tocar nesse assunto" com "Credo! Preciso terminar isso de uma vez!". Para mim, nada pior do que a famosa pressão para terminar uma tarefa criativa, embora eu conheça pessoas que só finalizam assim.


Neste meio tempo, produzi uma série de outros trabalhos e muitos deles só me faziam perceber uma distância entre aquela tela parada e as novas produções. É quase como se eu tivesse, literalmente, me tornado outra durante esses meses. De fato me tornei, em vários aspectos, mas não a ponto de perder minha linha de estudos. Poderia? Lógico. Às vezes, largar tudo e mudar totalmente o rumo da pesquisa é a chave para desenrolar as ideias. Mas não era meu caso. A segunda vez que coloquei o quadro no cavalete e fui mexer nele - lembrando que isso é quase um ano depois - eu revisei toda composição. Se manteve a ideia da mulher centralizada, ainda saíam pessoas do pescoço dela, mas tudo em volta mudou. Foi dali em diante que comecei a enxergar a resolução desta tela.


Foto: tela finalizada, 2022

E pra entender melhor, não tem como deixar de lado minha referência principal: memórias. Logo, a temática é, em sua maioria, biográfica. Minhas pinturas contam histórias. As minhas histórias. No fim, fica difícil desprender os acontecimentos atuais das lembranças e objetos preciosos, pois eles acabam se misturando no fundo da caixa.


Com o passar do último ano, também entendi que meu trabalho atua não só como desenvolvimento plástico, mas também como um veículo para uma visão mais profunda desses eventos, uma visita provocativa no porão das lembranças e um destrinchar dos itens esquecidos. Esses tempos, conversando com uma grande amiga, ela me disse que achava impressionante minha capacidade e coragem de mergulhar de cabeça nas memórias ou episódios pessoais e ainda sair de lá com materiais para criação. Ouvir isso me fez olhar para meu trabalho de forma mais ampla, a partir da visão de alguém que vê apenas os resultados, mas consegue delicadamente perceber a sensibilidade do outro através de uma representação artística.



 
 
 

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